sábado, 24 de novembro de 2012

A Filha do Ribeiro

"Aí é que eu quero ver! Nenhumas ruindades deste mundo não têm poder de segurar a gente pra sempre, Primo Argemiro..." (João Guimarães Rosa)

Então, e é bom fumar, melhor que umas, outras, outras só servem, outras, às vezes, relaxam nosso corpo até amolecê-lo, chega a pegar uma tristezazinha, mas também não deixa de servir, de acalmar. Traga: e lembra um acontecimento, porque a cabeça nunca para se não for mesmo para parar; e para com o restante, e não funciona mais. Todo o mundo um dia vai morrer, cê sabe.

Veja a filha do homem, lá, da venda ali pra cima, a mulher dele vendia o Avon, antes era brinco, anel, colar. Pergunta à sua mãe, que ela a conheceu, mas não tem importância se você não: o nome dele é Ribeiro, conhecem o homem por Preto Ribeiro, eu compro o fumo consigo, comprava antes, agora não vou mais lá porque minha perna não quer mais parar de doer, então prefiro ir ali perto, na esquina, só que é um pouco mais caro, mas jogo o bicho às 11, compro o Galo, aí a Cleusa da venda pega a falar, parece um rádio...  Eu escuto.

Ela nunca ou quase-nunca se levanta da cadeira, a velha, refrescando, na calçada. Mesmo assim, sabe tudo o que aconteceu de uma praça até a outra: marido que perdeu o emprego, filho que foi morar para São Paulo, esposa que compra a calabresa de-fiado com ela e não pagou "Vai para três meses". Eu escuto, há, há.

"Passou a Neide aqui, mais cedo, com aquele moleque mal educado. Se é meu filho, apanhava, e é feio, parece ter três papos, de-gordo, e não para de falar, e mexer nos produtos. Outro dia amassou um pacote de biscoitos, apertou, apertou, por fora, que, menina, virou um pó. Que moleque sem jeito! E ri. Tem gosto para a arte. A Neide tem o sangue ralo que nem a voz não tem força de crescer e corrigir a peste, mas eu não ia perder a mercadoria: falei, ah, Neide, vai desculpar, mas o biscoito eu vou cobrar junto. Ela sempre compra comigo, fica chato, eu sei, o negócio é se eu deixo uma, duas molecagens, é perigoso dona moça achar bonito também, rir aquela boca murcha, escondida trás do cabelo, chega a dar pena, mas a gente não pode deixar bagunçar".

Então foi que falei com a Cleusa em que o marido dela é um cachaceiro, não ajuda em nada, vive arrastando aquela sandália p'or-os-cantos, de cabelo molhado, penteado para trás, e o pente e o lenço no bolso da camisa: o dia todo.

Ela quietou-se um momento.

O velho, dia sim dia também vem beber a pinga dele, uma Brahma, mais várias, e jogar o dominó, o carteado, diz que casa dinheiro, o povo diz, se for, pior, por isso a Cleusa acha ruim com a Neide, com o pequeno, o homem ela perdoa, ah, safadeza! Dá gastura, gosto dessas coisas, não. Não converso com a pobre nunca, sei dela de-vista, do traste nem sei nem o nome...

E, cê sabe, não faço com mal-fazer de seu ninguém, Deus é quem cuida do que é dele a hora que melhor achar, amém. Se falei, foi pra encurtar conversa-que-não-lucra, lucra é a venda, sofre é a Neide, o moleque cisca. É melhor mudar o assunto.

"A senhora foi ver a filha do Preto Ribeiro da venda, dona Cleusa?", tornei, "Minha perna, a senhora sabe, tava ruim, não melhorou até hoje. Tomo o remédio por hora certa, da receita do doutor, que aí meu filho compra porque eu não leio nem número do telefone, mas ele tem estudo, a senhora conhece, o Zé, mora comigo. Não dá jeito, menina, mas, se Deus ajudar, amanhã tem a missa da alma da filha dele, e eu quero ir".

"Coisa feia", respondeu, "coisa triste demais. Meu finado marido, antes de começar a tocar esta venda aqui, trabalhava no café com o pai dele, na Serra, muitos anos, quando era aquela miséria, conheci era ainda moleque, os irmãos, a mãe benzia. De-quando meu velho, hi, hi, hi, foi dirigir carreta ela benzeu três dias, de-manhã cedo, aconselhou banho com arruda, vinagre, álcool, sal, três dias também, para tirar quebrante. Eu tinha medo, ele não, nenhuns, faço fé que concordou pra eu acalmar, hi, hi, hi".

"Pois, que coisa!", eu falei. E?

"Eu fui aquele dia, do velório. Fizeram na casa da irmã dele, ela mora perto d'onde cortaram os lotes, agora, das casas da Caixa, que muita gente pegou. O Ribeiro é viúvo, não é verdade, mora em cima da venda com a filha, não tinha como ser lá, hã?

Coisa de hora-e-pouco eu fiquei, depois voltei, calcular meus cálculos, aqui. Minha filha é quem cuida quando chega do trabalho, mas em final do ano tem muito serviço. Fui eu, com essas minhas vistas, afe, que os óculos não dão jeito, somar, hi, hi, hi. Vê, assim é que é a pessoa ficar velha, verga a perna, embaça a vista, hi, hi, hi".

Ela embrulhou meu fumo, eu ia saindo, aí lembrei perguntei o bicho é que foi que deu ontem, que eu joguei meu troquinho, um real, no avestruz. Foi borboleta.

Não ganho mais esse bicho, é um negócio! Jogava sempre com o Pernambuco o tempo em que era a outra casa que a gente morava, lembra? Lá pra cima, no fundo do quintal da Lica. Menino, dava gosto... Não jogo muito, só o meu troquinho, mas ganhava: podia ser às 11, às 14 e às 18, às vezes duas vezes no mesmo dia. Porque tinha o meu rádio velho, tem ainda, mas parou de falar, eu escutava o Signo, lembrava o sonho, aí o palpite era certo.

Uma vez o Pernambuco quis ficar com o meu dinheiro. Joguei na vaca. Deu. Ele falou que saiu foi o veado, vaca tinha dado de-anteontem, ou ontem, assim ele veio. Desconfiei. Falei pro Zé, ele partiu pra lá ver, e era a vaca, sim. Nunca de novo joguei com o malandro.


domingo, 5 de agosto de 2012

Saí de casa seco por cerveja hoje


Saí de casa seco por cerveja hoje,
Saí de casa doido por um trago forte,
Juízo nunca tive, sempre pouca sorte
E pouca verba.

E muita vez mudei daqui, e estive longe,
E estive longe... Sem mexer os pés do chão...
Bebi conhaque, vodca, sei que mais que não
Que não acaba!

Licença. Vou beber carqueja,
A dose São João da Barra
Pendura, seu José, porque
A verba é pouca
E sempre acaba.

“Respeita a minha barba, cara!”