quinta-feira, 27 de setembro de 2018

Põe-se o trabalho a ser feito. O trabalho a ser feito se impõe.
Posto por quem? Ninguém diz. Natureza não diz e não põe
Nada, a não ser o que não se descobre por nossa razão
Posta ao trabalho por nossa razão. Natureza não põe,
Põe-se por ela por nós, a ser feito por nós, e se impõe
Todo trabalho, e se impõe sem razão, pois somente supõe,
Tudo supõe... Natureza, que nada supõe, eu suponho,
Ri-se de nós, que vivemos um sonho, de dentro do sonho
Mais amplo, mais largo, sem restrições, que é seu riso materno.
Mãe, que se banha nas águas de todos os rios, e sorri;
Mãe, que se banha em vapor no vapor dos vulcões, e sorri;
Mãe, que respira fragrâncias de todas as flores sorrindo;
Mãe, que se ri da tolice dos homens de bem, tão raivosos,
Mas tão raivosos!... Tão tolos, assim mesmo; pode se rir.

Voa por sobre a cidade a Aurora, pro dia voar...
Cada pessoa que acorda amanhece também, como o dia;
Cada pessoa que dorme perdeu outro dia chegar;
Mas as pessoas despertam pra ver outro dia chegar?
Não; porque acordam somente, não é despertar: acordar;
Não é a mesma alegria do pássaro: é acordar;
Quais acordadas pessoas despertam do sono, na vida?
Quais acordadas pessoas somente sonharam, na vida?
Quais acordadas pessoas jamais acordaram, na vida?
Quantas, e quais, e de quantas maneiras, sonharam voar?

Voa por sobre a cidade a Aurora, já vai começar...
Morno sol, céu azul, muito barulho por nada escutar.
Fora é silêncio de dentro, de dentro pra fora, lá fora.
Dentro é sonhar que somente dormindo se pode voar.

Voa por sobre a cidade dormindo sonhando acordado.
Nem em seus sonhos quer ter algo a ver com o brilho da Aurora;
Lembra-lhe sempre que é hora de ir trabalhar novamente;
Lembra-lhe sempre que os dias são todos iguais para a Aurora,
Belos, porque por seus olhos só há infinito e infinito,
Olhos despertos, atentos e rubros, em lágrimas livres.

Olhos fechados e frios que seguram lágrimas prontas,
Seus olhos, por sua vez, com que tem de acordar todo dia.

Ele sentiu uma febre, que sente quem tem de sentir.
Teve de ir à seção responsável, e teve de entrar,
Doido de dor, feito um cão miserável, e teve uma febre,
Febre de ter de sentir que não cede, não cede, não cede...
Foi apreçado conforme seu peso e arquivado depois.
Houve um sujeito na cena da sala que disse, irritado,
Ele será arquivado sem rótulos, pois rotulá-lo
Fá-lo mais fácil de achar nas estantes dos nossos arquivos,
Sendo o melhor para todos agora esquecê-lo onde o arquivo.
Nunca depois desse dia se ouviu sobre febres e arquivos.

Bom é que seja melhor que queríamos, mesmo se igual.

Ama-se mais a distância, mas ama-se a mesma pessoa,
Firma-se o bem que há, haja-o, junto do mal, que é levado,
E é isso apenas, o vento a soprar, violento, os defeitos;
Leva-os sempre da vista, mas deixa ficar o chamego;
Leva de cá a acolá, porque o vento não deixa ficar;
Fica onde está, entretanto, porque realmente não foi.
Seja movido à vontade, no fim, não é vento, é vontade,
Vento é vontade, vontade invisível, potente e cruel.
Ele se engana a si próprio, porque resolveu que quer ser
Sem poder ser, agradar sem poder agradar, no reflexo
Seu nunca visto; mirasse o espelho, algum outro veria,
Sem entender, como um cego a quem falem de cores... Já julga,
É melhor não ser pior do que achei que seria, se fosse,
E vi um filme em que o vento endoidece as pessoas (ou quase);
Quase não me lembro mais, mas é isto, alguém perde a mãe, triste;
Pedro Almodóvar dirige-o, dane-se o Pedro Almodóvar!
Filmes enganam-nos, narram histórias de amor, redenção,
Mas a verdade nos deixa entre escombros, e somos escombros,
Nós também, por nossa vez, tropeçamos e somos o móvel
Em que tropeçam, um mundo de trôpegos, sem movimentos.

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