quinta-feira, 4 de outubro de 2018

Põe-se o trabalho a ser feito. O trabalho a ser feito se impõe.
Posto por quem? Ninguém diz. Natureza não diz e não põe
Nada, a não ser o que não se descobre por nossa razão
Posta ao trabalho por nossa razão. Natureza não põe,
Põe-se por ela por nós, a ser feito por nós, e se impõe
Todo trabalho, e se impõe sem razão, pois somente supõe,
Tudo supõe... Natureza, que nada supõe, eu suponho,
Ri-se de nós, que vivemos um sonho, de dentro do sonho
Mais amplo, mais largo, sem restrições, que é seu riso materno.
Mãe, que se banha nas águas de todos os rios, e sorri;
Mãe, que se banha em vapor no vapor dos vulcões, e sorri;
Mãe, que respira fragrâncias de todas as flores sorrindo;
Mãe, que se ri da tolice dos homens de bem, tão raivosos,
Mas tão raivosos!... Tão tolos, assim mesmo; pode se rir.

Voa por sobre a cidade a Aurora, pro dia voar...
Cada pessoa que acorda amanhece também, como o dia;
Cada pessoa que dorme perdeu outro dia chegar;
Mas as pessoas despertam pra ver outro dia chegar?
Não; porque acordam somente, não é despertar: acordar;
Não é a mesma alegria do pássaro: é acordar;
Quais acordadas pessoas despertam do sono, na vida?
Quais acordadas pessoas somente sonharam, na vida?
Quais acordadas pessoas jamais acordaram, na vida?
Quantas, e quais, e de quantas maneiras, sonharam voar?

Voa por sobre a cidade a Aurora, já vai começar...
Morno sol, céu azul, muito barulho por nada escutar.
Fora é silêncio de dentro, de dentro pra fora, lá fora.
Dentro é sonhar que somente dormindo se pode voar.

Voa por sobre a cidade dormindo sonhando acordado.
Nem em seus sonhos quer ter algo a ver com o brilho da Aurora;
Lembra-lhe sempre que é hora de ir trabalhar novamente;
Lembra-lhe sempre que os dias são todos iguais para a Aurora,
Belos, porque por seus olhos só há infinito e infinito,
Olhos despertos, atentos e rubros, em lágrimas livres.

Olhos fechados e frios que seguram lágrimas prontas,
Seus olhos, por sua vez, com que tem de acordar todo dia.

Ele sentiu uma febre, que sente quem tem de sentir.
Teve de ir à seção responsável, e teve de entrar,
Doido de dor, feito um cão miserável, e teve uma febre,
Febre de ter de sentir que não cede, não cede, não cede...
Foi apreçado conforme seu peso e arquivado depois.
Houve um sujeito na cena da sala que disse, irritado,
Ele será arquivado sem rótulos, pois rotulá-lo
Fá-lo mais fácil de achar nas estantes dos nossos arquivos,
Sendo o melhor para todos agora esquecê-lo onde o arquivo.
Nunca depois desse dia se ouviu sobre febres e arquivos.

Bom é que seja melhor que queríamos, mesmo se igual.

Ama-se mais a distância, mas ama-se a mesma pessoa,
Firma-se o bem que há, haja-o, junto do mal, que é levado,
E é isso apenas, o vento a soprar, violento, os defeitos;
Leva-os sempre da vista, mas deixa ficar o chamego;
Leva de cá a acolá, porque o vento não deixa ficar;
Fica onde está, entretanto, porque realmente não foi.
Seja movido à vontade, no fim, não é vento, é vontade,
Vento é vontade, vontade invisível, potente e cruel.
Ele se engana a si próprio, porque resolveu que quer ser
Sem poder ser, agradar sem poder agradar, no reflexo
Seu nunca visto; mirasse o espelho, algum outro veria,
Sem entender, como um cego a quem falem de cores... Já julga,
É melhor não ser pior do que achei que seria, se fosse,
E vi um filme em que o vento endoidece as pessoas (ou quase);
Quase não me lembro mais, mas é isto, alguém perde a mãe, triste;
Pedro Almodóvar dirige-o, dane-se o Pedro Almodóvar!
Filmes enganam-nos, narram histórias de amor, redenção,
Mas a verdade nos deixa entre escombros, e somos escombros,
Nós também, por nossa vez, tropeçamos e somos o móvel
Em que tropeçam, um mundo de trôpegos, sem movimentos.

Vê-se dos gênios o vulto, e o vulto dos grandes sucessos
Sem consciência da plebe a gritar para ter atenção
Por um momento, a gritar-lhes por sua atenção, Um momento!
Sua saliva é perdida, entretanto, entre tantos pedidos,
Súplices sempre, que sempre ignorados em suas constantes
Preces humildes por seus deuses, pedem mais uma vez outra
Para voltar a pedir outra vez, mas os vultos são vultos,
Não é verdade?... Quem é, nesse mundo covarde bastante,
Bravo e senhor de seus próprios desejos, ciente dos atos
Parvos de nossa vaidade, a virar-se e a fitar sofrimentos,
Sobremaneira essas dores alheias que cruzam seus passos?
Singram altivas as proas de poucos no mar de pobreza,
São joio, mas julgam trigo ser, brita vulgar preciosa,
Planta babosa, porém não a planta babosa excelente,
Pois controlados estão por completo por sua vaidade,
Ratos e porcos fragrantes, mas ratos e porcos ainda...
Há até quem Deus explore do trono diáfano além!

À vida peço tão pouco, mas pouco lhe importa, se rezo,
Rezo ao acaso de a vida querer que o que quero pedir-lhe
Seja de si uma parte, e componha o que é e o que sou,
Parte da vida que sou, um partícipe a mais, iludido...

Sou um escravo que bebe nas horas de ócio impossíveis.
Busco a medalha que não será minha porque serei lento
Para correr ou nadar ou bater ou pular contra os outros
Meus adversários, eu sou qualquer coisa que engasga e vomita,
Mas busca ser o primeiro de Roma com pompa e com título.
Eu sou qualquer coisa a ser lamentada e depois descartada,
Sou ninguém como alguém quer ser alguém, mesmo a ser como eu,
Jura saber não ser nada, mas quer ser primeiro de Roma.

Não sei pensar, tenho sono de tanto pensar que não sei;
Não sei pensar - e quem pode pensar com tamanho calor!...
Não sei pensar e nem devo, pois devo parar e sentir.
Não sei se é sono ou preguiça, se é o padre ou se é a missa, ou se é tédio,
Fluxo e refluxo do mar vencedor de distâncias, mar vasto...

Lá para trás donde estou se passaram os séculos outros.
Desinteressam-me menos por serem passados e inócuos.
Não me interessam os reis de seus tronos nos feudos sombrios;
Penso, porém, nos porqueiros e bobos da corte normanda...
Nonde era o canto do tédio diário ficar junto às pestes?...
Sem sentir sofro e não sofro, também, por sofrer sem sofrer.

Eu comi bem, bebi bem e senti-me bem, sigo a existir,
Como se houvesse existido quem nunca existira, eu existo,
Como incomoda ignorar! Sem saber o que é ignorar
Sem essa tosca cabeça de gente vestida e quebrada
Para entender adjetivos! Criando-os mesmo, lançando-os
Para compor um capítulo vil da política em crônicas
Quentes de ódio e repulsa por gente que é gente também,
Vil e doente, repleta também de palavras de ódio
Por sua vez, eu suponho que todos serão como são,
São porque hão de ser, hão de ser vis, e a vileza vem antes
Deles a ser vis, remindo os pecados de todos. Amém.

Vendem-se vários venenos ao vício e à virtude do vulgo.
Por serem ambos moléstias do espírito, intimamente
Tenho a certeza que pode ter minha carcaça completa
Com carne, minha alma informe e incompleta a si própria formada,
Para não ter segurança ao falar quaisquer coisas que queira.

Néscios das mais variadas loucuras boiaram serenos,
Suas façanhas despertam cobiça nos mais sabedores...

(Como fustigo a razão, e esta, impávida, não me tem nojo...).

Reles que são, a ciência de sê-lo que pensam que têm
É mais mistério ao mistério insondável da vida e da morte,
Onde a razão morará desde os idos humanos antigos,
Prenhes de símbolos cridos reais e tangíveis e próprios,
Símbolos com que compor a ofensa aos tecidos dos mundos...

Não sentem chuva, se não lhes molhar esta ao toque gelado.

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