E o veneno se sorve a longos tragos
Nos seios brancos e nos lábios frios
Das lânguidas Frinés!
(Casimiro de Abreu)
1.
O predador em falsa, falsa pele
Pode ser seu parceiro de sinuca
Porque não pôde ver maldade nele,
Porque não pode ver maldade, nunca.
Não lhe pode esquecer a sua sorte,
Não vá por onde é frio e perigoso,
Não busque, a aflição nunca se repete,
Não lhe faz bem seu caldo venenoso.
Então mude os temperos da comida,
Um outro mais sagaz é quem lhe diz,
"Para ser liberado das correntes,
Para cicatrizar essa ferida
Que o marcou, machucou, fê-lo infeliz"...
Num sorriso mostrou o fio dos dentes.
2.
Num sorriso mostrou o fio dos dentes
Da menina sentada só na guia.
Só na guia sentada ela sorria,
E sorriam, também, e tão brilhantes
Os seus olhos ciganos, e contentes,
A planejar maldades. Dia a dia,
Só na guia sentada prosseguia.
Seus poderes sorriam, e pungentes
Consequências calculam. Pobre dele
Que voltar o olhar, que descuidar,
Que apreciar meninas nas calçadas,
A sós, nas guias, doidas e malvadas,
A esperar, a fingir, a simular...
O predador em falsa, falsa pele.
3.
O predador em falsa, falsa pele,
A ocultar maldades, aproxima-se
Dele, que não suspeita a quem a prece
Sua chega, que não sabe quem dele
É próximo, mas mau, que o mal é próximo,
E mais próximo é, e mais exato,
Conforme o dia deita luz ao fato,
Conforme as horas passam, do seu termo,
O seu termo mais triste, mais sofrido,
Mais triste termo nunca tenha havido
De ninguém a ninguém, e desde nunca.
Volte a atenção ao próximo, portanto,
Que jogará mil almas contra o vento.
Pode ser seu parceiro de sinuca...
4.
Pode ser seu parceiro de sinuca,
Pode dar boas tardes, boas noites,
Bons dias, boas vidas, boas mortes,
Pode parecer bom enquanto peca,
Parecer ter o dote de Rebeca,
A tentar lamber outros belos dotes
(E, claro, não refiro seus lingotes
Mas, sim, ao que a luxúria sempre toca).
É verdade. Não olhe tão pasmado,
Que me pasma que não saiba a verdade,
Que tenha de ser eu quem lha revele
Porque insiste em estar tão retardado,
Porque ainda imagina uma bondade,
Porque não pôde ver maldade nele.
5.
Porque não pôde ver maldade nele
Não suspeitou de sua traição.
A intuição sugere e não impele,
Mas faz salientar a indecisão.
Infeliz é quem não sabe o caminho,
Engana-se quem não possui visão,
Imprudente é quem não pensa sozinho,
Nem pode ver, nem todo, nem fração.
Mas ágeis carcarás, mui violentos,
Não soem recear, nem vacilar,
Nem fazem caso quando alguém se invoca,
E não receberão quaisquer lamentos,
Nem os abalará, se espernear
Porque não pode ver maldade, nunca.
6.
...Porque não pode ver maldade, nunca,
Irá sentir abrir-lhe a carne a faca,
E verá que se riem da ferida,
E que se riem mais, se é mais sofrida,
Demais, o sofrimento em sua vida
Tornar-se-á canção de mais querida
Da gente que festeja a violência.
(Mais, se, demais, vertida. Paciência).
Cativante e formosa seja a noite
Sem lua por que voam pirilampos
No verão a brilhar em alagados
Brejos, e espessos bosques, e calados
Cerrados, e perdidos pelos campos,
Não lhe pode esquecer a sua sorte.
7.
Não lhe pode esquecer a sua sorte
Se vierem tocar-lhe os resultados
Por todas as balizas. Vêm a trote,
E vêm para aparar os descuidados
Que surgem em seu caminho. Para leste,
Se para oeste vão, atrapalhados,
Se para o leste vão, surgem do oeste,
Vão-se, do norte ao sul, desnorteados.
Sempre o perdido atrai o que o encontre,
Sempre o covarde o fraco sempre ataca,
Sempre é certa a maldade, desde o ventre:
Tão cedo o possa, seja cauteloso,
Ande por sobre a terra firme e seca,
Não vá por onde é frio e perigoso.
8.
Não vá por onde é frio e perigoso
A tentar emular um corajoso,
Sem atrasos será um idiota,
E talvez findará em chão sem volta,
Em terra onde a coragem será morta,
Em terra onde o vilão ninguém o peita,
Em terra onde o valente, mal nasceu,
Fundo furou buraco e se escondeu.
Chorará em lamento tal, ridículo,
Que fará ser ridículo batê-lo
A quem o vem bater, quem o cacete.
Não tem de ser Aquiles, grego heroico,
Não importa se escutam o seu eco,
Não busque, a aflição nunca se repete.
9.
Não busque, a aflição nunca se repete,
Depois que aflições há pouco lhe fica
Além de um mau humor que não se explica,
Do cansaço dos cem aos vinte e sete,
Dos reflexos confusos, das difusas
Reflexões, do reflexo desse velho
Que todas as manhãs vê nesse espelho,
De expressões aflitivas, sós, obtusas;
Que causa o espanto a não querer olhá-lo?
Carcaça tão nojenta não há tal,
Por que representar tamanho abalo?
Não se concebeu mal tão poderoso,
Só sua covardia é anormal,
Não lhe faz bem seu caldo venenoso.
10.
Não lhe faz bem seu caldo venenoso
De mentiras cozidas, digeridas,
Mentiras peçonhentas, muito ardidas,
Fantasias, patranhas, seu cremoso
Caldo de decepção muito afamado
Entre aqueles que muito sentem fome
Por não sentirem fome tal quem come
Da verdadeira fome motivado.
A verdade abrirá seu apetite,
Desatravancará o seu espírito,
Curará sua mente da gastrite
Em que sua dieta empobrecida
Lançou-a a padecer. Está contrito?
Então mude os temperos da comida.
11.
Então mude os temperos da comida,
O estilo da camisa, o penteado,
O perfume, o calção, e o seu calçado,
E, fundamental, mude sua vida
Nos detalhes de lado das vitrinas,
Nas fibras que coseram com esmero
O amor (que desprendeu o desespero,
De si) ao seu lugar devido, apenas
Para deixar tristezas para trás,
De modo inapelável e irrevogável,
Cortar todos os tês, pingar nos is
Todos consigo próprio, fique em paz,
Que vibre o coração nota aprazível,
Um outro mais sagaz é quem lhe diz.
12.
Um outro mais sagaz é quem lhe diz
As palavras que não vou mais ouvir,
E, assim, não restar mais infeliz,
E, se quer dizer, diga quando ir
Daqui, donde saudades não terei,
Donde saibam enormes essas dores
Das saudades, que nunca as sentirei
Por volverem, em raivas, em rancores
Que rodopiam, mortos-vivos lentos,
Que ritualizaram sua marcha,
Mas já veem meus olhos indolentes
Fatigarem-se tanto dos tormentos,
Tanto, que o corpo todo se relaxa
Para ser liberado das correntes.
13.
Para ser liberado das correntes,
Para pô-las de lado, e prosseguir
Sem nada que ver, nada ter que ouvir,
Nada de tristes quadros ou sons tristes,
Não ter de chorar, não ter de sorrir,
Sem dias semelhantes, diferentes
Dias tampouco, não mais ouvir chistes,
Não mais recuar, nunca em frente ir,
Nada de recepção nem de partida,
Nem aceleração, e nem frenagem,
E nem Lua conjunta, nem oposta,
Desnecessária, a busca da resposta,
Só precisa de tempo e de coragem
Para cicatrizar essa ferida.
14.
Para cicatrizar essa ferida
Que o fez sangrar, não tema o próprio sangue,
Tenha-a estancada. E tenha exangue,
E tenha já vencido, e já sem vida,
Quem segura o punhal que a provocou,
Que não é sabedor quem não é rápido,
Quem poupa um inimigo porco, esquálido,
Da ira que ele próprio originou.
A quem atira flechas mostre o escudo,
A quem não obedece tenha mudo,
A quem quer a caneta dê um giz;
Antes busque a vingança que o perdão,
Antes cruel carrasco que a ilusão
Que o marcou, machucou, fê-lo infeliz.
15.
Que o marcou, machucou, fê-lo infeliz,
Fez o que bem queria como o quis
Por bem, e trouxe o mal, e olhou a quem,
Sem o cobrir de nada, de ninguém,
E fez com que rodasse, barulhento,
Soprado turbilhão frio, violento,
E neste vê estar montada a Morte,
Que atende quem a chama desta sorte,
Com quem ninguém pondera, nada ou tudo,
Pois tudo a Morte soube deste mundo,
Da Morte não se esconde consequentes...
Se a Morte então pegar da sua mão,
Revelar sua face, veja, irmão:
Num sorriso mostrou o fio dos dentes...
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